Confesso que tenho cada vez menos paciência para casos patológicos de burrice
violenta. Aquela que não fica no seu cantinho, mas mostra os dentes e morde.
Antes de prosseguir, vale o aviso: burrice não é a falta de um conhecimento
específico. Um camponês de uma comunidade isolada pode não saber navegar na
internet. Mas duvido que você saiba produzir alimento a partir da terra como ele. É
impossível saber sobre tudo e a beleza de estar em sociedade é a
complementaridade dos saberes, a ponto de precisarmos uns dos outros para
sobreviver.
Burro também não é quem separa sujeito e predicado por vírgula. Muita gente não
entende isso e desvaloriza a opinião do outro por não compartilhar dos mesmos
padrões de fala ou do mesmo universo simbólico. Algumas das pessoas mais
sábias que conheci são iletradas. E alguns dos maiores idiotas têm doutorado.
Significa que os iletrados são melhores que os doutores? Não. Então, o contrário?
Também não. Pois é burrice achar que usar ou não a norma culta da língua é
condição para participar do debate público.
Trato aqui da burrice de quem menospreza o conhecimento, seja ele qual for,
chegando a odiar quem o detém ou quem busca aprendizado.
Da burrice prepotente e apressada, que xinga um texto ou vídeo na rede sem ter
consumido nada além de seu título ou visto o nome do autor ou autora. E, diante
das críticas sobre a superficialidade desse comportamento, rosna, dizendo – no
melhor estilo Donald Trump – que tudo o que é importante pode ser escrito em uma
linha ou um tuíte. Ou que acredita que um produto é ruim simplesmente por não ter
ido com a cara do rótulo.
O burro é aquele que vê seu preconceito violento como sabedoria.
18/03/2018 O orgulho de ser “burro” mostra que o poço não tem fundo no Brasil - Notícias - UOL Notícias
https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2018/03/10/o-orgulho-de-ser-burro-mostra-que-o-poco-nao-tem-fundo-no-brasil/ 2/3
Essa burrice, montada na soberba, pensa que já sabe de tudo a ponto de tachar os
que discordam de sua visão de mundo como mal informados, comprados ou
manipulados sem apresentar dados e fatos que corroborem a crítica. Ou tenta calar
as vozes diferentes da sua por encarar a dissonância como ruído e não como
música.
Pois a burrice sempre tenta destruir o conhecimento que ameaça jogar luz sobre ela
própria.
Antes, se alguém me mostrasse uma imagem de pessoas enlouquecidas em torno
de montanhas de livros em chamas, eu me lembraria de ''Fahrenheit 451'', de
François Truffaut (1966). No filme, livros são proibidos, sob o argumento de que
tornam as pessoas infelizes e improdutivas. Quem lê é preso e ''reeducado''. Se
uma casa tinha livros, ''bombeiros'' eram chamados para queimar tudo.
Hoje, se me mostrassem uma imagem assim, logo me perguntaria: onde foi desta
vez? Algum grupo fundamentalista islâmico, cristão, judeu ou budista? Interior dos
Estados Unidos? Neonazistas europeus? África? Coreia do Norte? China? São
Paulo, Rio ou uma grande cidade brasileira?
No dia 10 de maio de 1933, montanhas de livros foram criadas nas praças de
diversas cidades da Alemanha. O regime nazista queria fazer uma limpeza da
literatura e de todos os escritos que desviassem dos padrões impostos. Centenas
de milhares queimaram até as cinzas. Einstein, Mann, Freud, entre outros, foram
perseguidos por pensarem diferente da maioria. A Alemanha ''purificou pelo fogo''
as ideias imundas deles, da mesma forma que, durante a Contra-Reforma, a Santa
Inquisição purificou com fogo a carne, o sangue e os ossos daqueles que ousaram
discordar de sua interpretação da bíblia.
A burrice também é incapaz de aceitar o próprio erro, transferindo a culpa para o
outro. Ou, diante de um questionamento, foge da autocrítica, dizendo que outra
pessoa ou partido também faz a mesma coisa. A burrice não pede desculpa.
Pois a burrice de um indivíduo acha que é absolvida pela burrice de outro indivíduo
ou do coletivo.
Nesta semana, a página de um grupo de extrema direita fez uma enquete entre
seus seguidores, questionando quem eles ''jamais'' votariam para presidente.
Muitos interpretaram mal a pergunta e responderam o inverso, em quem votariam.
Até aí, tudo bem. Quem nunca?
Então, os administradores da página informaram várias vezes sobre o erro de
interpretação. O que fizeram os seguidores? Culparam o grupo por ter feito uma
pergunta ''errada''. A certa seria a pergunta de sempre, sem a inversão do ''jamais'',
ou seja, aquilo que não levasse à reflexão. Neste caso, pensar foi visto como um
erro e tratado como tal.
A burrice não aceita a existência de outra versão que interprete os fatos além da
sua. É incapaz de reafirmar sua visão e, ao mesmo tempo, conviver com análises
divergentes. Enxerga a opinião alheia como ''notícia falsa'' não por desconhecer a
diferença entre formatos de textos narrativos e opinativos, mas por não admitir o
conteúdo. A burrice de alguns seguidores de políticos que não aceitam a existência
de divergências ocorre da direita à esquerda, ou seja, não é monopólio de ninguém.
Isso só vai ser resolvido com a qualificação do debate público. De acordo com o
sociólogo Bernard Charlot, um saber só tem valor e sentido por conta da relação
que ele produz com o mundo. Quando o debate público for mais qualificado, a
pessoa se sentirá mais motivada a procurar se informar melhor e de maneira mais
plural a fim de conviver com seus pares nas redes sociais ou mesmo na vida offline.
18/03/2018 O orgulho de ser “burro” mostra que o poço não tem fundo no Brasil - Notícias - UOL Notícias
https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2018/03/10/o-orgulho-de-ser-burro-mostra-que-o-poco-nao-tem-fundo-no-brasil/ 3/3
Ler coisas com as quais concordamos e com as quais não concordamos é um
primeiro passo. Ler fontes de informação que não sejam anônimas, ou seja, que se
responsabilizam pelo que divulgam, é outro. Preferir fontes que baseiam seus
relatos em provas e não em suposições ou teorias da conspiração. Que são
gostosas, mas burras.
A escola deve promover debates e reuniões para que todos entendam que tipo de
mensagem estão passando a seus filhos – ainda mais neste ano eleitoral. Dois pais
ou duas mães que defendam o voto em um candidato X e dois pais ou duas mães
que defendam o voto em um candidato Y podem ser convidados para apresentar
seus pontos de vista para os alunos em uma turma, de forma respeitosa. Pois a
aprender como fazer a discussão de valores com respeito a ideias divergentes é tão
importante quanto absorver conhecimento técnico. Quando uma escola fecha os
olhos a isso, transmite uma ideia. Em outras palavras, o silêncio não é neutro.
A opinião pública e parte dos intelectuais alemães se acovardaram ou acharam
pertinente o fogaréu nazista descrito acima, levado a cabo por estudantes que
apoiavam o regime. Deu no que deu. Hoje, vemos muitos se acovardarem diante de
ondas burras, intolerantes e violentas frente ao conhecimento. Não, não estou
comparando nossa sociedade com a nazista. Apenas dizendo que a burrice pode
ser atemporal. E universal.
Como sempre digo: falta amor no mundo, mas falta interpretação de texto. E
calmante na água de muita gente.
Dê: Leonardo
Sakamoto