segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

'O BRASIL DA OBEDIÊNCIA': LEIA ARTIGO DE J.R. GUZZO PUBLICADO NA REVISTA OESTA

 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, governadores e autoridades cruzam a Praça dos Três Poderes para visitar as instalações da sede do Supremo Tribunal Federal (STF) um dia após atos que depredaram a sede do tribunal, o Congresso e o Palácio do Planalto | Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, governadores e autoridades cruzam a Praça dos Três Poderes para visitar as instalações da sede do Supremo Tribunal Federal (STF) um dia após atos que depredaram a sede do tribunal, o Congresso e o Palácio do Planalto | Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
Governo e Supremo disparam um ataque sem precedentes ao conjunto de leis em vigor no Brasil, aos direitos civis do cidadão e às liberdades públicas 
OBrasil não teve uma mudança de governo no dia 1º de janeiro de 2023 — está tendo, pelo que mostra a observação dos fatos, uma mudança de regime. Em apenas uma semana, a nova gestão do presidente Lula tinha 1.500 presos num ginásio de esportes em Brasília — nunca houve isso em nenhuma ditadura brasileira do passado, e com cenas que lembram o Estádio Nacional de Santiago do Chile no golpe do general Pinochet. Foi decretada intervenção federal em Brasília. O governador, eleito três meses atrás já no primeiro turno, foi deposto do cargo por três meses. Já existe, antes mesmo do novo Congresso entrar em funcionamento, uma CPI pronta para fazer acusações criminais contra adversários do governo. Foi convocada a Brasília a Força Nacional de Segurança, um grupo extraído das polícias militares para atuar em locais onde não há presença policial regular — convocada para Brasília, uma das cidades mais policiadas do país. Há um pedido de extradição, sem base legal, contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, que teve de internar-se no hospital dos Estados Unidos para cuidar de efeitos da facada que quase o matou em 2018. Apareceram até tanques de guerra nas ruas da capital, depois que tinham acabado a invasão e a depredação do Congresso, do Supremo e do Palácio do Planalto no domingo dia 8 de janeiro.
crimes manifestantes embaixador
Ginásio da PF ficou lotado com manifestantes que estavam em acampamento | Foto: Reprodução/Twitter

A eleição de Lula, ao que parece, não foi suficiente; vê-se agora que foi um passo, entre outros, para a formação de um Brasil sem oposição real. Está em execução neste momento um projeto que pretende manter o país sob o controle de uma coligação entre o STF e o Executivo, através do Ministério da Justiça e do restante do aparelho de repressão do Estado. A situação de ilegalidade que tem estado em vigor nos últimos anos por ação do Poder Judiciário, e que levou Lula de volta à presidência da República depois de suas condenações por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, está sendo confirmada — em vez de um retorno à normalidade após as eleições, que terminaram exatamente com o resultado que queriam, o governo e o Supremo disparam agora um ataque sem precedentes ao conjunto de leis em vigor no Brasil, aos direitos civis do cidadão e às liberdades públicas. E a “pacificação” do país, que Lula pregou durante toda a sua campanha eleitoral? Não existe, simplesmente. O que existe é o contrário da paz: prisões em massa, ameaça de processar penalmente milhares de pessoas, censura nas redes sociais e mais todo um arsenal repressivo de multas, bloqueio de contas bancárias e intimações para depor na Polícia Federal.

A eleição de Lula, ao que parece, não foi suficiente; vê-se agora que foi um passo, entre outros, para a formação de um Brasil sem oposição real

A Lei Maior do Brasil, na prática, não é mais a Constituição Federal de 1988 — é o inquérito perpétuo, sem limites e ilegal que o ministro Alexandre Moraes conduz há mais de três anos para punir o que ele, a esquerda e a mídia chamam de “atos antidemocráticos” e “desinformação”, crimes que não existem na legislação brasileira — não, certamente, da forma como são apresentados, e não com a finalidade de fazer perseguição política. Este inquérito, em violação a toda legislação brasileira, não tem data para ser encerrado. É conduzido em sigilo. Não está livremente aberto aos advogados dos indiciados. Toma decisões sem o indispensável processo que as leis exigem. Acusa, investiga, condena e aplica punições — tudo ao mesmo tempo, e segundo a vontade de uma pessoa só, o ministro Moraes. Não está sujeito a nenhum recurso, ou a qualquer tipo de apreciação superior. Não toma conhecimento da existência do Ministério Público, único órgão do Estado brasileiro autorizado por lei a acusar alguém neste país. É o Ato 5 do regime de exceção que está sendo imposto ao país neste momento.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e do Senado Federal em exercício, Veneziano Vital do Rêgo, governadores e governadoras dos 26 estados e do Distrito Federal se reúnem em Brasília (9/1/2023) | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

 

Como um presidente que prometia há pouco um “Brasil Feliz”, a “volta” da “democracia” e o “fim da ditadura de direita” pode acabar a sua primeira semana de governo com 1.500 pessoas presas numa espécie de campo de concentração em Brasília? A face verdadeira da “nova ordem” é essa que está se vendo aí. Sua prioridade não é começar uma administração diferente da anterior, executar um plano de governo, ou cumprir compromissos de campanha — é eliminar o outro lado, e trocar o Estado de Direito pela força policial em que se transformou o STF no Brasil de hoje. O Sistema Lula, com o apoio ativo do Supremo, não está propondo um confronto político com os adversários, ou uma disputa legítima com a oposição — está numa ação de vingança, ou de profilaxia. Desde o dia 1º de janeiro está deixando claro que o seu programa de governo começa com a eliminação dos “inimigos”, ou quem está contra; vai se fazer tudo, digam o que disserem as leis, para garantir que o “outro lado” não volte nunca mais a existir politicamente na vida nacional. Não há, por parte do presidente e das forças que o apoiam, nenhum gesto de conciliação. Ao contrário, o recado é: “Vocês vão ser presos, multados, censurados. Suas contas no banco vão ser bloqueadas. Vocês não vão poder exercer livremente suas atividades. Vocês vão perder o emprego”.

Não há terroristas que levam cadeirinhas de praia para cometer atos de terror — terrorista joga bomba, mata gente e explode estação de trem; golpista não dá golpe de estado sem tropa, canhão e comando militar. Mas dois erros, se efetivamente houve dois erros, não fazem um acerto — e se houve mais culpados a única saída é punir a todos por igual

Não se trata de uma suposição. “As prisões não são uma colônia de férias para golpistas”, afirmou o ministro Alexandre de Moraes, do STF, ao comentar as observações de que estaria havendo tratamento desumano para os presos de Brasília. Disse, também, que “não se pode tratar de forma civilizada” os acusados e que “não haverá apaziguamento” com os que ele acusa de serem “golpistas”, ou “terroristas” na linguagem oficial do regime em implantação — termo adotado de imediato pelo consórcio da mídia para se referir aos presos ou, mais geralmente, aos manifestantes que vêm se reunindo em frente aos quartéis para contestar o resultado da eleição presidencial. “O tempo das prisões em flagrante já passou”, disse o novo ministro da Justiça. “Agora as prisões devem ser preventivas e temporárias.” Ou seja: o governo deu a si próprio autorização para prender cidadãos com base naquilo que julgar como conduta criminosa. É um retrato preciso de um governo que tinha como prioridades, no discurso de campanha, “humanizar as penitenciárias” e “desencarcerar” os criminosos.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, e o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, durante cerimônia de posse do diretor-geral da PF, (10/1/2023) | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

O presente surto de repressão vem em seguida à invasão dos edifícios dos Três Poderes, por parte de manifestantes que estavam em Brasília protestando contra o resultado da eleição presidencial e pedindo “intervenção militar”, ou que vieram para a capital no fim de semana com o propósito específico de promover a baderna. Tanto faz se são uma coisa ou outra, ou se havia marginais infiltrados entre eles com objetivos políticos. Não importa se as invasões foram feitas pela direita, a esquerda ou o Arcanjo Gabriel — o que se fez foi crime, e não há desculpas, atenuantes ou justificativas para os crimes cometidos. A lei proíbe a violência e a destruição de patrimônio público; é errado em qualquer circunstância, e não há “mas” ou “veja bem” que se apliquem ao que houve. O episódio todo, é verdade, está marcado por mistérios que com certeza nunca serão esclarecidos. Não se entende por que, sabendo que haveria protestos em Brasília, nenhuma autoridade pública fez absolutamente nada para proteger os prédios invadidos. Também não há explicação plausível para que, com toda a sua estrutura de segurança, os órgãos do governo tenham permitido que os autores das invasões destruíssem livremente, durante três horas seguidas, os edifícios que foram atacados. Não ficou claro como Lula, em suas primeiras palavras sobre o episódio, tinha pronto, já datilografado e ao alcance da mão, o decreto de intervenção no Distrito Federal. É incompreensível, também, por que manifestantes que protestam há 70 dias, sem causar o mínimo incidente em qualquer ponto do Brasil, tenham enlouquecido de repente. Não há terroristas que levam cadeirinhas de praia para cometer atos de terror — terrorista joga bomba, mata gente e explode estação de trem; golpista não dá golpe de estado sem tropa, canhão e comando militar. Mas dois erros, se efetivamente houve dois erros, não fazem um acerto — e se houve mais culpados a única saída é punir a todos por igual.

O problema está no tipo, na extensão e nas intenções da retaliação lançada pela máquina oficial. Está, também, na igualdade de critérios — se as violências de Brasília têm de ser tratadas com base na legalidade, a violação permanente da lei por parte do inquérito ilegal do STF e a descida do governo para a repressão também não deveriam ser aceitas e tratadas como “defesa da democracia”. O artigo 359 do Código Penal, que substitui a extinta Lei de Segurança Nacional, pune como crime a tentativa, através de “violência ou grave ameaça”, de abolir o Estado democrático de direito ou depor o governo legitimamente constituído. Não é prevista qualquer outra hipótese para a prática desses delitos — e, em qualquer caso, a punição tem de obedecer a devido processo legal, com garantias para os acusados, pleno acesso aos autos por parte dos advogados e procedimentos públicos. Até as invasões de Brasília não houve violência ou grave ameaça a nada e a ninguém — e, apesar disso, cidadãos têm sido presos, multados ou perseguidos com a acusação de cometerem “atos antidemocráticos”, até por conversarem no WhatsApp. E agora? Vai ficar pior? Importa, mais que tudo, o ataque às liberdades — e a montagem de um país sem dissidências, sem o direito de se manifestar em público e sem oposição de verdade. Se qualquer brasileiro pode ser acusado de cometer “atos antidemocráticos”, “desinformação” e outros crimes não previstos na lei, não existe liberdade política efetiva neste país. O que o Sistema Lula-STF está dizendo, na prática, é que não será tolerado um país que não preste obediência ao governo — e no qual a oposição, como em estádio de futebol, tem de ficar como a arquibancada que vaia o juiz, mas não influi em nada no resultado. José Dirceu, uma das estrelas do PT, já disse que ganhar eleição não tem nada a ver com ganhar o poder. Deve ser isso.

COM: J. R, GUZZO