(Por Maria Mineira) Hoje em dia,
esses costumes estão praticamente desaparecidos. No entanto, em meados
do século passado, na região da Serra da Canastra, as tradições da
Quaresma, eram seguidas com profundo respeito. O ritual acontecia em
algumas localidades rurais como Guiné, Serrinha, Buracas, Beira da
Serra... (foto acima de André Dib)
Não se podia cantar alto, ouvir
rádio, comer carne dia de sexta-feira, cortar cabelo, fazer pagodes ou
mutirões. Era tempo de jejum, abstinência, penitência e rezas. Os santos
eram cobertos com um pano roxo.
Dizia-se que o “coisa ruim” ficava
solto. Tempo perigoso de aparecer assombração, lobisomem e almas
penadas, nas estradinhas e encruzilhadas que davam acesso às fazendas.
Tais imagens povoavam o imaginário popular.(foto acima de André Dib)
Um costume daquele tempo era a
“Recomendação das almas Folia de almas, Tirar para as Almas”. São
muitas variantes, mas o objetivo era encomendar as almas do purgatório
aos cuidados de Deus, por meio de orações, a fim de aliviar-lhes as
penas, para que alcançassem o descanso eterno.
A encomendação
era realizada as segundas e sextas-feiras da Quaresma, quando a
escuridão se estendia pela encosta e o choro do velho monjolo se
misturava ao canto do curiango a noite inteira. Os lobos uivavam no
morro, a onça pisava sorrateira nas folhas da copaíba, farejando um
bezerro desavisado no pasto.
Homens e mulheres podiam
participar. Todos reunidos ao redor do cruzeiro ao pé da serra. Envoltos
em lençóis brancos, saíam às 10 horas da noite. O ritual consistia em
visitar nove ou dez casas. Se a noite estivesse muito escura, podiam
levar candeias ou lamparinas.
Vovô Joãozinho e seu compadre Pedro, guardavam de cor as rezas e regras
a serem observadas. Minha mãe, avó e as vizinhas sabiam os cânticos de
cor e os entoavam emprestando ao ato um tom triste e piedoso. Com as
matracas e os berra-bois, saíam de casa em casa; os encomendadores de
almas, até a madrugada, com cantos fúnebres e arrepiantes.(fotografia de André Dib)
O Capitão do grupo anunciava a
chegada diante de uma residência, jogando um punhado pedras no telhado. A
família não podia abrir a porta e nem acender as lamparinas. Jamais
olhar pelas frestas, sob pena de ver seres do outro mundo. Quando alguém
mais incrédulo se atrevia, levava pedradas.
Os moradores costumavam deixar uma
gamela com quitandas numa mesa posta no terreiro. Dentro da casa, as
crianças apavoradas, choravam de medo com o barulho das matracas. Até os
adultos tremiam.(foto abaixo de André Dib)
Meu avô Joãozinho, era o capitão e cantava:
—Acorda, acorda pecador!
Lá dentro alguém respondia:
—Pecador num tá dormino!
—Assim como Deus num dorme,
—nóistamém num durmiremo.
Todos ficavam quietos e rezavam em silencio enquanto lá fora a turma dos encomendadores dizia:
—Nessa casa mora gente
—Que vai ficá cum Deus!
Sem jamais olhar para trás, lentamente caminhavam noite adentro cantando:
—Da vara nasceu a rama
—Da rama nasceu Maria
—Reza pras benditas almas
—Padre nosso, Ave-Maria!
Acreditava-se que se alguém da
procissão olhasse para trás, veria as almas, pois, estas seguiam o grupo
até o final do percurso, aguardando a sua hora de ganhar salvação.
Outra coisa interessante é que ninguém podia abrir porteiras ou
colchetes. Era preciso passar por cima ou por baixo dos mesmos.
Quando uma pessoa mais idosa ia junto, precisava de ajuda para subir nas porteiras. Isso tudo fazia parte da penitência.
Minha mãe conta que acompanhou muitas procissões e não raras
vezes, acontecia muita coisa inesperada aos caminhantes noturnos.
Em algumas ocasiões eram atacados
pelos cães de guarda das fazendas. Nessa hora não havia como não quebrar
as regras. O dono da casa tinha que sair e prender os animais. Era uma
correria de gente gritando e subindo nas tábuas do curral, se
embaraçando nos lençóis, fugindo da cachorrada.
Assim seguia a
romaria noturna, sem nunca voltar pelos mesmos caminhos. Quando os galos
ensaiavam os primeiros cantos e as árvores ficavam cheias de canarinhos
anunciando a aurora, chegavam à última casa. Nessa hora podiam ser
recebidos com uma farta mesa de café e quitandas.
O ritual só terminava na sexta-feira da Paixão, à meia noite, ao pé da cruz das almas. (foto acima de André Dib)Então, todos ajoelhados, cantavam uma música antiga, os mistérios do terço, finalizando com esses versos:
—Santa Maria Imaculada,
—Mãe de Nosso Senhor Jesus
—Por Ela, nos abençoa e guarda.
—Em nome da Santa Cruz!
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Maria Mineira é professora e escritora em São Roque de Minas
*Esta e outras 52 histórias fazem parte do livro:“Ao Pé da Serra- Contos e Causos da Canastra” de Maria Mineira.Para adquirir um exemplar entre em contato pelo facebook ou pelo e-mail:mariamineira2011@yahoo.com.br
Fotos ilustrativas nossa. Não fazem parte do livro.Todas as imagens são de autoria do fotógrafo André Dib e foram autorizadas para esta postagem pelo autor.