Fronteira em Tucson, no estado americano do Arizona, usada para a travessia de pessoas e de drogas, como o fentanil vindo da China, do México para os EUA| Foto: EFE/Paula Díaz |
A droga que mais mata nos Estados Unidos foi apreendida pela primeira vez no Brasil, levantando temores de que a substância responsável por uma epidemia de overdoses na América se alastre pelo país. No mês de fevereiro, a Polícia Civil do Espírito Santo encontrou 31 frascos de fentanil (analgésico cem vezes mais potente que a morfina) com um fornecedor do tráfico em Cariacica, na Grande Vitória. A principal linha de investigação supõe que o medicamento esteja sendo usado para batizar cocaína e outras drogas sintéticas, procedimento comum também nos EUA.
A mistura geralmente é feita pelos cartéis para potencializar e baratear as drogas, aumentando o lucro dos traficantes. Dessa forma, a maior parte de quem usa fentanil não sabe disso, o que contribui para o aumento de overdoses, já que o consumo de apenas 2 miligramas do produto pode ser fatal para um adulto médio. O baixo preço também é um dos fatores de popularização da droga: uma dose chega a custar menos de dois dólares, segundo estimativas.
Atualmente, a overdose é a principal causa de morte de americanos entre 18 e 45 anos. Os dados mais recentes mostram que a expectativa de vida no país teve a maior queda dos últimos 100 anos, sendo o uso excessivo de drogas um dos fatores que contribuíram para isso. Em 2021, os EUA registraram mais de 107 mil mortes por envenenamento decorrente do uso de drogas, sendo que, segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), quase 70% delas foram causadas por opioides sintéticos como o fentanil. O número é 15% maior que as mais de 93 mil pessoas mortas por overdose em 2020. Em 2019, haviam sido 71 mil registros, o que representa um crescimento de 30% em um ano. Duas décadas antes, em 1999, foram pouco mais de 8 mil mortes por overdose.
Entre 2019 e 2021 os casos de morte de adolescentes (entre 10 e 18 anos) por abuso de drogas mais que dobrou no país (a média mensal de eventos cresceu 109% em três anos). No ano passado, o órgão federal de combate às drogas nos Estados Unidos apreendeu 4.500 quilos de fentanil, o dobro do ano anterior, e quantidade suficiente para matar todos os 330 milhões de habitantes do país.
Como Chefe de Toxicologia Médica na Escola de Medicina da Universidade de Massachusetts, a médica Kavita Babu estudou o fentanil e seus análogos durante anos. Ela conta que a entrada do opioide no mercado de drogas americano foi identificada quando os casos de overdose explodiram. “Em 2016, meus colegas e eu descobrimos que os pacientes que chegavam ao pronto-socorro relatando uma overdose de heroína geralmente apresentavam apenas fentanil nos resultados dos testes de drogas”, recorda. O uso do medicamento na adulteração de outras drogas, tornou-o “onipresente nos Estados Unidos”, transformando o mercado de entorpecentes e aumentando as estatísticas de mortes.
Por sua potência analgésica, o fentanil é usado na medicina para alívio imediato da dor, sedação ou como anestesia para cirurgias. “Mesmo nas condições controladas de um hospital, existe o risco de que o fentanil reduza as taxas de respiração a níveis perigosamente baixos, o que é a principal causa de mortes por overdose de opioides”, explica Babu, que também leciona a disciplina de Emergência Médica.
Brasil
No Brasil, o fentanil é uma medicação de uso
exclusivo hospitalar. Os frascos apreendidos no Espírito Santo foram produzidos
em Minas Gerais e seriam oficialmente entregues a um hospital capixaba. A
polícia ainda investiga se houve desvio do material durante o transporte ou se
chegou a ser entregue à instituição hospitalar e foi vendido para o tráfico
depois disso.
Especialistas em segurança pública explicam que é
difícil prever se o fentanil passará a ser uma droga dominante por aqui, como
ocorre nos EUA. “É possível. O fentanil é muito potente e faz efeito rápido.
Por isso mata dezenas de milhares de pessoas por ano nos EUA. A introdução de
uma droga nova é influenciada tanto pela repressão (que no Brasil tem se
mostrado particularmente eficiente nos últimos anos) quanto por decisões ‘de
mercado’ tomadas pelos cartéis do narcotráfico”, explica Roberto Motta, autor
do livro A construção da maldade: como ocorreu a destruição da segurança
pública brasileira (Avis Rara, 2022).
O envolvimento da China e de outros países não
ocidentais na produção da substância é outro fator que quebraria uma das
barreiras hoje existentes ao comércio ilegal do fentanil em território
brasileiro. Nos Estados Unidos, o setor de Imigração e Alfândega identificou a
China como a principal fonte de fentanil ilícito e outros analgésicos análogos
que entram no país. O tráfico ocorre tanto pela fronteira com o México quanto
por correio diretamente para os EUA, inclusive por envelopes de cartas comuns.
Sem necessidade de plantio, como a heroína e outras
drogas, o fentanil requer menos tempo e espaço de produção, podendo ser
fabricado em pequenos laboratórios. A margem de lucro também é alta: um
investimento de US$ 3 mil (R$ 15.750) pode gerar ganhos de US$ 1 ,5 milhão (R$
7,87 milhões).
“A República Popular da China, maior fonte do
problema do fentanil, é o maior fabricante e exportador mundial de ingredientes
farmacêuticos. Talvez 40% da produção farmacêutica global venha da China, mas o
regime comunista tem poucas leis que regem substâncias controladas como o
fentanil. A regulamentação inadequada de medicamentos na China abriu espaço
para cerca de 160 mil empresas químicas com capacidade de produzir e exportar
fentanil”, explica Peyton Smith, membro do Programa de Jovens Líderes da
Heritage Foundation, um think tank conservador norte-americano com sede em Washington,
DC.
Consequência de políticas
Uma importante rota de distribuição do fentanil via
México é o estado americano do Arizona, onde os custos econômicos da crise de
opioides quadruplicaram em uma década, segundo um relatório publicado pelo
Common Sense Institute (Instituto Senso Comum, em tradução livre), organização
de pesquisa apartidária dedicada à proteção e promoção da economia estadual.
De acordo com o economista Glenn Farley, autor do levantamento, foram US$ 53 bilhões gastos pelo Arizona em 2021 com aplicação da lei, assistência médica e tratamento de abuso de substâncias. Ele analisa que a popularização do fentanil foi desencadeada não intencionalmente por decisões políticas, como: repressão de opioides prescritos (que levou os viciados a buscar soluções nas ruas); esforços de descriminalização em alguns estados (o que tornou o uso menos dispendioso); e políticas de fronteira mais “humanitárias” do governo Biden (com o aumento sem precedentes de migrantes chegando do México, o que desviou a atenção dos agentes de fronteira em relação ao fluxo de drogas para o país).
“Essas três coisas realmente combinaram e
interagiram de maneiras que ninguém pensou”, disse Farley à National Review. O
abuso de opioides começou a crescer nos EUA na década de 1970, com as
alternativas à morfina sendo prescritas para o tratamento da dor. Em 1999,
foram 116 milhões de prescrições de opioides no país, número que atingiu um
pico de 255 milhões em 2012. A preocupação com o abuso dessas substâncias levou
à criação de leis estaduais e federais, como a Lei de Epidemia de Opioides do
Arizona em 2018. Porém, a demanda não caiu com a dificuldade de obter as drogas
legalmente.
Paralelamente, estados da Costa Oeste, como
Califórnia, Colorado e Oregon, começaram a descriminalizar as drogas, o que
levou cidades como Denver, Portland e San Francisco a se transformarem em
mercados de entorpecentes ao ar livre. “Ao mesmo tempo em que nos tornamos
menos tolerantes com o uso de medicamentos prescritos, nos tornamos mais
tolerantes com o uso de drogas de rua”, pontua Farley. “Sem surpresa, as
pessoas reduziram o uso de medicamentos prescritos e aumentaram o uso de drogas
de rua”, completa.
Por: Bruna Komarchesqui/TBN