Um alerta da Organização Mundial da Saúde (OMS), no dia 23 de abril, alarmou o mundo sobre uma hepatite misteriosa, severa e de causa desconhecida que acomete crianças. Ainda não presente no Brasil, a doença tem chamado a atenção de cientistas e algumas hipóteses estão sendo estudadas, que giram em torno de um adenovírus, possível aumento de casos de hepatite ou notificação de casos que anteriormente não estavam sendo registrados.
Até 21 de abril, a OMS apontava para 169 notificações em 11 países na Europa e um na América do Norte. Os casos foram reportados, em ordem decrescente, no Reino Unido (114), Espanha (13), Israel (12), Estados Unidos (9), Dinamarca (6), Irlanda (5), Holanda (4), Itália (4), Noruega (2), França (2), Romênia (1) e Bélgica (1).
O relatório alertando o mundo se deve, principalmente, para redobrar o cuidado e incentivar investigações aprofundadas em países com casos, pois não há histórico de números como esses e, muito menos, em crianças — grupo que tradicionalmente não apresenta casos de hepatite com uma gravidade severa. Até o dia em que o relatório foi lançado, aproximadamente 10% das crianças diagnosticadas precisaram realizar transplante de fígado e uma morte foi registrada. Mais comum na faixa dos três aos cinco anos, os casos registrados vão de um mês de vida até os 16 anos.
Segundo a médica hepatologista do Hospital Brasília Natália Trevizol, a hepatite é definida como uma inflamação no fígado que pode resultar de uma variedade de causas infecciosas e não infecciosas. Os agentes infecciosos que podem levar à doença são os vírus, como os dos tipos de hepatite (A, B, C, D, E) e os que não têm afinidade com o fígado, como herpes e citomegalovírus. As causas não virais, segundo a profissional, incluem certos medicamentos e agentes tóxicos. Além disso, abuso de álcool também pode antecipar um quadro de hepatite.
Diferenças entre as hepatites comuns e a misteriosa
A principal diferenciação entre a doença registrada nos 12 países e a hepatite comum são suas características marcantes, que são de atingir um público mais jovem e o modo como tem evoluído, de maneira abrupta — com pouco tempo entre a infecção e agravamento), segundo Marcela Santos, doutora em saúde pública e coordenadora técnica da Sala de Situação de Saúde da Universidade de Brasília (UnB).
O que pode explicar a divergência é que os vírus passam por diversas mutações com o tempo e representam uma questão complexa de ser avaliada sem estudos laboratoriais mais aprofundados. “É quase uma loteria, se estamos diante ou não de uma nova cepa. Se está se adaptando a algum perfil específico, ainda é cedo para afirmar. Apesar disso, sabemos que é possível que exista uma inter-relação entre mutações, interações do vírus com outros patógenos que podem, sim, estar levando a mudar a características dele e facilitando o desenvolvimento e o agravo da doença”, explica a pesquisadora.
Sintomas
Os sintomas comuns da doença são mal-estar, cansaço, perda de apetite, desconforto abdominal, febre, coloração amarelada na pele e mucosas, escurecimento da urina e dores. No entanto, na manifestação registrada nos casos infantis que intrigam especialistas, os principais sintomas são a hepatite aguda e a inflamação no fígado, com elevados níveis de enzimas no órgão e sintomas gastrointestinais presentes. Em muitos casos, são comuns as ocorrências de diarreia e vômitos seguidos de manifestações severas da enfermidade e icterícia, ou pele amarelada, causada pelo excesso de bilirrubina, substância encontrada na bile que, quando em excesso, pode indicar problemas no fígado.
As formas comuns da hepatite viral não foram detectadas em nenhum dos casos, o que pode indicar que está relacionado a outro tipo de agente infeccioso, como o adenovírus do tipo 41 — principal hipótese no momento, de acordo com a hepatologista Natália Trevizol. Apesar de ser uma das principais apostas de pesquisadores pelo mundo, “ainda não temos confirmação para apontar uma causa precisa”, afirma Marcela Santos. Existem também hipóteses relacionando com o coronavírus de alguma forma, mas sem certeza, também.
“Os próximos estudos de caso-controle sendo desenvolvidos são muito importantes para identificar os fatores relacionados com mais precisão”, afirma a pesquisadora da UnB. Estudos de caso-controle são um tipo observacional no qual uma hipótese é colocada sob prova e fatores são relacionados para identificar se existe ou não relação entre a doença, fatores e dar um norte para a população.
Vacinação
Como existem vacinas para alguns tipos de hepatite (A e B), um questionamento importante é se elas, no mínimo, auxiliam a melhorar o aporte imunológico do organismo contra a “hepatite misteriosa”. Marcela Santos salienta que, até o momento, não é possível fazer tal relação, mas que a vacina é importante para prevenir contra os tipos já registrados, para os quais ela é destinada. “Não sabemos se pode trazer proteção extra, mas de qualquer forma é importante”, completa.
Perspectivas no Brasil
Os casos da patologia ainda estão muito localizados e não há casos registrados no Brasil. Apesar disso, é sabido que doenças com vetores virais têm alto potencial de difusão, principalmente pela facilidade de circulação causada pela globalização e transportes aéreos. Fato que levou o governo de Pernambuco a emitir um alerta e direcionamento à rede de saúde do estado.
“Equipes de saúde, principalmente pediatria, deve estar atentos a crianças/adolescente com 16 anos ou menos, principalmente com relato de passagem pelos locais afetados, que apresentem icterícia ou sintomas compatíveis com hepatite aguda”, diz um trecho da nota técnica da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco, que também recomenda uma série de testes para os casos suspeitos, inclusive para poder aumentar a investigação da doença, com mais dados disponíveis.
O posicionamento do estado é importante para que, dessa forma, caso a doença venha a se manifestar no país, seja identificada de forma precoce e as autoridades sanitárias possam agir e identificar surtos antes que se espalhem. “Não estamos em situação de alarme, mas devemos manter a atenção a possíveis sinais e contaminação”, recomenda a analista em epidemiologia pela UnB Marcela Santos.
Os cuidados de higiene e as precauções com materiais de compartilhamento são essenciais em qualquer contexto, de forma rotineira. Mas, para prevenir a doença, é ainda mais relevante. Por isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma, em nota, que “medidas preventivas para adenovírus e outras infecções comuns envolvem lavagem regular de mãos e higiene respiratória”.
CRÈDITOS: CORREIO BRASILIENSE