quinta-feira, 27 de outubro de 2022

QUE DELÍCIA DE CENSURA

 

Ilustração: Brazhyk/Shutterstock
Ilustração: Brazhyk/Shutterstock
Uma decisão do TSE na noite anterior tinha proibido a Jovem Pan de fazer certas referências pejorativas a Lula. Nada mais justo. Basta de perseguição a inocentes.
Esse negócio de censura é muita emoção. Já tinha ouvido falar e experimentado aqui e ali, mas ao vivo é outra coisa. Não um simples “cala a boca” a partir de algo que você falou. Isso não tem tanta graça. Estou me referindo a um “cala a boca” sobre algo que você ainda não falou. É quase transcendental.

A censura prévia te leva a um estado psicológico muito louco. Não é comparável a nada. Uísque, cachaça, barbitúrico, crack, cocaína, lança-perfume, meditação, rapé, anestésico, batida de limão, psicanálise freudiana, psicanálise junguiana, tarja preta, sexo pago, amor verdadeiro, café sem açúcar, hipnose, transe místico, fila de banco, Jornal Nacional, papo de bêbado, aula de sociologia, chilique de adolescente, trepanação, jejum tibetano, churrasco de melancia, arte contemporânea, palestra do Bill Gates, comício da Simone Tebet, dor de corno, paixão avassaladora — nada dá tanta onda quanto censura prévia. Só experimentando pra saber o que é.

O mágico na censura prévia é que você ainda não pensou e já não pode falar. Isso é cósmico. Ou seja: você tem a opção de pensar e guardar o pensamento pra você ou nem pensar, que dá menos trabalho. Liberdade de escolha. Pensar ou não pensar, eis a questão. Ser ou não ser já era.

Mas não fique aí pensando que estamos falando de uma censura prévia convencional: “isso, isso e isso” você não pode falar. Tolinho. Pode caprichar bem mais na imaginação, no chicote e nas algemas. Hoje é dia de rock, bebê. A censura prévia de que tratamos aqui é uma que te proíbe antecipadamente de falar coisas que você não sabe quais são. Sentiu a pimenta? Assim foi o dia inesquecível de trabalho ao vivo na Jovem Pan.

Uma decisão do TSE na noite anterior tinha proibido a emissora de fazer certas referências pejorativas a Lula. Nada mais justo. Basta de perseguição a inocentes. No entanto, para não corrermos o risco de falar mal do Lula por engano, achando que estávamos falando bem, era preciso saber quais referências ao candidato estavam proibidas. Queríamos saber — mas ficamos querendo. Ninguém tinha o texto da decisão. O Tribunal ficou de mandar. Mas não mandou.

Parece que não pode falar que ele é ladrão, disse um colega. “Descondenado” é melhor não usar, disse outro

Parece que não pode falar que ele é ladrão, disse um colega. “Descondenado” é melhor não usar, disse outro. O jurídico recomenda que não sejam feitas críticas ao judiciário, completou um terceiro. Críticas ao judiciário? Imagina, por que iríamos criticar o judiciário? Somos a favor da justiça. Somos a favor das leis. A favor da ciência. A favor da vacina. Da ética. Da medicina. Da vida. Da felicidade. Do caráter. Da empatia. Da saúde. Da beleza. Da graça (não confundir com “de graça”. Defendemos o trabalho). Somos a favor da honestidade. Se inventarem a justiça injusta, a vacina que não imuniza ou a ciência da fé não temos nada com isso. Não abandonaremos nossos valores. Por que criticaríamos o judiciário brasileiro?

Parece que “ex-presidiário” pode falar.

Não! Última forma: ex-presidiário não pode.

Ué, mas não é um dado biográfico?

Mais ou menos. Ele não ficou em presídio.

Ah, é. Verdade. Então pode ex-detento?

Pode. Mas é melhor não.

Perfeito.

Parece que não pode falar também de corrupção no governo Lula.

O quê?!

Isso mesmo que você ouviu.

Mas por que, isso? Quem falaria de corrupção no governo Lula?

Ninguém.

Pode falar dos fins de semana bucólicos em Atibaia?

Não sei. Melhor não.

Por quê?

Sei lá, o TSE pode interpretar como invasão de privacidade do Lula.

Faz sentido. Deixa quieto.

E assim iniciamos alegremente mais um programa jornalístico a menos de duas semanas da eleição presidencial com a alma leve, sem a ditadura do pensamento fazendo línguas e mandíbulas trabalharem em excesso. Como diria Joseph Stalin, deixa a vida me levar, vida leva eu.

POR: Guilherme Fiuza