31/10/2024 | 11 min de leitura
Por cerca de dois anos, Simone vem trocando cartas com Francisco, que está recluso na Penitenciária de Iaras (SP), onde não recebia visitas havia dez anos —até ser abordado por Simone. As conversas deram origem ao livro "Maníaco do Parque: A Loucura Lúcida".
Ao UOL, Simone contou como tudo começou, como foram as dez visitas que fez no presídio e a experiência com Francisco.
'Escrevi para 8 e ele me respondeu'
"Sou fonoaudióloga e
sempre tive de estudar um pouco sobre a área da psiquiatria para exercer
meu trabalho. Na pandemia, meus atendimentos abrandaram pelo isolamento
social.
Por indicação de um amigo, assisti à série 'Mindhunter' [que investiga a psicologia do assassinato], que me fez pensar muita coisa. A ideia de escrever um livro foi amadurecendo com o tempo e a curiosidade.
Escrevi uma carta para oito reclusos de Portugal e do Brasil. Desses, só um me respondeu: o Francisco [de Assis Pereira, conhecido como maníaco do parque]. Confesso que foi a última pessoa que pensei que fosse me responder.
Ele foi muito solícito: queria saber do projeto, receber minha visita. Foi uma carta direta, parecia que estava feliz e se disse 'convertido'.
Ele disse que minha carta chegou com propósito, como uma resposta de Deus para ele.
Havia 10 anos que ninguém o visitava. A família dele sofreu muito por tudo o que aconteceu — e sofre até hoje. Eles são de uma zona rural empobrecida e não têm condições de fazer visitas regulares. Cheguei a visitá-los algumas vezes e enviar recados do Francisco para a mãe e vice-versa.
Desde então, foram mais de 50 cartas trocadas — e até hoje continuamos. O tema central dele é espiritualidade, tanto é que a primeira coisa que ele pediu para eu levar era uma Bíblia.
Morava em Portugal na época e minha irmã, em Taubaté, me ajudava a intermediar os envios das cartas porque era mais fácil enviar por email para ela, que imprimia e entregava, do que enviar direto de Portugal.
Ela tirava foto da resposta e me enviava. E foi assim nesses dois anos e meio.
Nesse meio tempo, recorri a um psiquiatra, que me deu obras para ler sobre o tema —e fui estudando ao longo do projeto. A ideia era que ele fizesse a assessoria dessa troca de correspondências.
Muitas vezes precisava da ajuda do psiquiatra para decodificar o que o Francisco dizia, porque o pensamento dele é desorganizado. Às vezes, só escrevia sobre a Bíblia; outras vezes, perguntava, como todo recluso, quando eu iria vê-lo.
Começava um assunto, terminava em outro: o que mais me chamava atenção era a desorganização do pensamento.
'Esperei um ano para a visita'
Para
visitá-lo, tive de esperar muito tempo. Poderia entrar com uma
declaração de amásia [que comprova vínculo afetivo], mas sempre deixei
muito claro que queria autorização da minha visita explicando meu
objetivo.
Ele até queria que eu entrasse com amásia, porque assim poderia estar em duas semanas lá dentro, mas nunca quis dar essa expectativa.
Acho que no início ele confundia um pouco as coisas. Ora me chamava de doutora, ora de meu amor, às vezes me dava nomes como 'bonequinha' ou chamava pelo meu nome. Às vezes, eram todos estes nomes na mesma carta.
Ou seja, havia uma confusão, mas fui deixando clara minha posição. Após esperar a norma de seis meses após a inclusão do meu nome na lista [de visitantes], tive de pedir ajuda a uma advogada para poder visitá-lo porque ainda não havia sido liberada.
Esperei cerca de um ano para a primeira visita acontecer. Não pensava muito sobre encontrá-lo, só pensava no próximo passo. E, quando aconteceu, já tínhamos estabelecido um elo devido às cartas.
'Há manipulação e confusão'
Em abril de 2023,
a juíza deu um parecer favorável para minha visita e consegui ir ao
Brasil em maio daquele mesmo ano. Decidi me mudar para o Brasil em
junho, para concluir o projeto, porque não conseguiria fazer de Lisboa.
Estava preparada para isso porque estudei e segui um protocolo. A visita foi por parlatório, entre vidro e com um telefone. Só tinha duas horas para estar com ele.
Fui bem recebida e havia proximidade, mas a comunicação nunca é fácil porque sempre há manipulação e confusão.
Com a proximidade, ele também demonstrava curiosidade e acabava falando da minha vida, com naturalidade. Queria saber como era minha vida em Portugal, o nome da minha filha. Sabia sobre minha família, já que minha irmã era quem me ajudava com as cartas, então tinha de explicar minha conexão com Taubaté.
Sei da periculosidade dele e o vejo como um ser humano muito doente. E que não pode estar novamente em sociedade.
Ele chegou a perguntar para mim uma vez como seria se ele fosse solto em 2028 [quando deve passar por uma reavaliação]. Francisco disse que, para ele, estava tudo bem se ele não fosse solto.
Mas isso é o que ele diz —o que se passa na cabeça dele nunca vamos saber de verdade.
'Pressão tremenda'
Quando entrava na
penitenciária, não podia levar nada, nem caneta. Nossas conversas eram
sobre tudo, de forma muito orgânica. Mas, na hora de fazer o livro,
entrei nas perguntas.
Nessa fase, tinha de ser muito específica, porque ele nunca me falava os pormenores ou detalhes.
Às vezes, via que ele tinha necessidade de falar outras coisas e seguia com isso. Ou que desviava da pergunta e eu tinha de deixá-lo falar, para então retomá-las.
E às vezes eu notava que ele não queria responder. Era notório. Mas eu tinha de fazer as perguntas. Era uma pressão tremenda.
Na saída da penitenciária, tinha um posto de gasolina, onde ficava por um tempo colocando tudo no papel, para não esquecer nada. Estava absorvida por aquele projeto.
Nessa fase das perguntas, não posso dizer que as conversas não foram emocionalmente impactantes.
A manipulação dele era nítida. Quando ele não concordava com
algo, manipulava para as coisas serem como ele queria que fosse. Isso
tanto nas respostas quanto no comportamento.
Simone Lopes Bravo
Escrevi o livro e voltei para Portugal. Não houve uma despedida formal e, mesmo que tivesse tempo para isso, não sei se faria, porque não sei como ele reagiria. A advogada que me ajudou a entrar na penitenciária foi quem avisou que eu estava retornando.
'Plena noção de que é doente'
Agora
nós nos escrevemos por cartas e quem faz a mediação é a advogada. Tenho
plena noção de que ele é uma pessoa doente, do mais grave nível.
E acho que as patologias mentais ainda são um tabu na sociedade e nosso sistema carcerário não está preparado para isso. A psiquiatria é uma especialidade que ainda tem pouco investimento. Deveria ter um sistema voltado para esse tipo de recluso."
Com informações do UOLe Diário do Brasil