A grande arma da democracia é a palavra para mostrar o que é fato e o que é narrativa.
Hoje
escreverei sobre teoria de poder e aquilo que entendo esteja ocorrendo
no Brasil, mas com visão, embora de professor universitário, mais de
historiador do que de jurista ou de filósofo. Escreverei sobre o que
parece fundamental, de como a história vê a realidade dos fatos.
Para
o historiador, interessam os fatos, não as narrativas de quem está no
poder. Porque quem está no poder busca sempre, com suas
narrativas, justificar o que está fazendo.
O historiador vê os fatos que são as consequências daquilo que quem está no poder ou está provocando ou está vendo.
É um fato que o presidente Lula declarou no Foro de São Paulo que ele se orgulhava de ser comunista.
Quem
conhece Marx sabe perfeitamente que Marx queria eliminar por completo
todos os opositores para impor o que ele chamava de ditadura do
proletariado, inclusive justificando meios violentos para afastar
aqueles que pensassem de forma diferente.
Também
é fato que o Presidente da República declarou que ele se sentia
orgulhoso de ter colocado um ministro comunista no Supremo Tribunal
Federal.
É
algo que, efetivamente, para o Poder Judiciário, cuja função é
interpretar o direito sem se imiscuir na política, esse fato é um fato
preocupante. Como também é fato que o Ministro Dino no Supremo segundo o
presidente Lula exercerá também função política. O Supremo, tendo um
político,
evidentemente poderá ver os fatos diferentemente daqueles que lá
estão, apesar de hoje muito mais voltados ao Executivo do
que estavam no passado, não terem essa sensibilidade, por serem
especialistas no direito.
É
um fato que o presidente Lula recebeu Maduro, ditador da Venezuela, com
tapete vermelho. E que ele tem relações de grande amizade com Ortega,
com os ditadores de Cuba, com Putin, ditador da Rússia, e com o Xi
Jinping, ditador da China. É fato também que, por ser praticamente
antiocidental, hoje está contra Israel e a favor do Hamas. Estou falando
de fatos. Aquilo que, enfim, são fatos encontrados na realidade
brasileira. Chegou até a dizer que os Estados Unidos orientaram, por seu
departamento de Justiça, a Operação Lava Jato contra a Petrobrás.
O
Supremo Tribunal Federal do Brasil, apesar de constituído de grandes
ministros, passou a ter, desde o ano passado, uma certa condução
política. Isso declarado pelos próprios ministros. Um dos ministros do
Supremo declarou que eles derrotaram o bolsonarismo. Uma diferença de
apenas 2 milhões de votos entre 60 e 58 milhões. Mas não é função do
Supremo derrotar
o bolsonarismo. Um outro ministro declarou que eles garantiram a eleição do
Lula.
Também
é verdade que os veículos favoráveis ao presidente Bolsonaro, esses
veículos, nos últimos 15 dias que antecederam as eleições, foram
desmonetizados e proibidos de veicular matéria contra o presidente Lula
ou o candidato Lula.
Um
dos aspectos que impressiona nas ditaduras da Venezuela, de Cuba, da
Nicarágua, da Rússia e da China é que o Poder Judiciário é submisso
ao Poder Executivo.
E
hoje nós vemos um Poder Judiciário que vai a solenidades com Presidente
da República e está em permanente apoio ao que o Presidente da
República diz. No próprio discurso, durante as “comemorações” do dia 8
de janeiro, o ministro Alexandre Moraes e o presidente Lula, num
discurso fora do contexto, criticado até pelos editoriais dos grandes
jornais, como a Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo, declararam que
eram os grandes defensores da democracia e queriam o controle das redes
sociais. É um fato que todos ouviram.
É um fato também que o que ocorreu no dia 8 de janeiro foi algo que todos sabiam que não poderia ser um golpe de Estado.
O
fato é que as Forças Armadas, eu dizia isso desde agosto do ano
passado, como professor da Escola de Comando de Estado Maior do Exército
onde ministrei aulas de direito constitucional até 2022 para aqueles
coronéis que, dentre eles, no fim do ano seriam escolhidos, os generais
de brigada daquele ano, que as Forças Armadas nunca embarcariam na
iniciativa de dar um golpe de Estado. Isso já ficara demonstrado desde
quando era presidente echefe das Forças Armadas, o presidente Bolsonaro.
Naquele período não houve a menor tentativa de golpe, porque as Forças
Armadas jamais o dariam.
À
evidência, com muito mais razão não haveria golpe a partir do momento
que o Presidente Lula passou a ser chefe das Forças Armadas!
Ora,
um grupo desarmado, de pessoas sem nenhum passado, sem ficha policial
e, ao mesmo tempo, pessoas que, de rigor, tinham, segundo os jornais, um
deles, uma faca, não poderiam em nenhum lugar do mundo e nem no Brasil
dar um golpe de Estado. Basta lembrar que um pequeno contingente de
soldados, sem ter dado um tiro, conseguiu desocupar os prédios públicos e
prender mil e setecentas pessoas, em alguns minutos apenas.
Não
houve golpe de Estado, porque não era possível um golpe sem armas, sem
Forças Armadas, que estavam do lado do governo cujo chefe era o
presidente da república, por isso não houve também atentado violento ao
Estado de Direito. O Estado de Direito depende dessa segurança para ser
mantido. Ele estava inteiramente com o presidente.
Também
é um fato que, hoje, o conceito de democracia é um conceito que não é
dado pelo povo, mas é definido por ministros do Supremo Tribunal
Federal, que falam o que é democracia e a defendem.
Também,
outro fato, há limitações na liberdade de expressão no país e há também
presos políticos, porque esses presos, do dia 8 de janeiro, são presos
políticos. Pessoas que sem nenhum passado criminal, sem nenhuma arma,
incapazes de dar um golpe de Estado, foram condenadas a 17 anos por
terem expressado e destruído alguns prédios públicos, como o pessoal do
MST e o pessoal do PT fizeram na Câmara dos Deputados, no governo do
Michel Temer, sem terem sido condenados por atos golpistas. Ou como se
tentou fazer, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, por
ocasião da votação da privatização da Sa
besp, um grupo também de esquerda, soltos em 24 horas.
Isso
levou o V-Dem Instituto da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, que
eu o cito sempre, a declarar que o Brasil é uma democracia relativa, que
aqui há presos políticos e aqui no Brasil nós não temos liberdade de
expressão.
Esses fatos é o que os historiadores verão no futuro e que nós estamos vivendo na atualidade.
E é por essa razão que eu gostaria de lembrar um outro fato que me preocupa, e esse mais do que outros.
A
reforma tributária terminou com a federação, pois o que caracteriza uma
federação é sua autonomia política, administrativa e, principalmente,
financeira.
O direito de definir aqueles tributos que são da sua competência dentro do âmbito da propriedade federativa.
Para
os municípios, o grande imposto era o ISS, para os estados, o ICMS.
Agora haverá apenas autonomia política e administrativa. Não haverá mais
autonomia financeira. Todo o IBS, que é dos estados e municípios, será
definido em lei pela União, que terá que seguir o regime jurídico do
CBS.
E
quem vai receber, distribuir, controlar, devolver aquilo que for
necessário é um conselho instalado em Brasília com 27 representantes dos
municípios, 27 representantes dos estados, mas subordinados a uma
legislação definida pelo Congresso Nacional.
O
que vale dizer, em outras palavras, aquele poder que as Assembleias
Legislativas tinham de definir o regime jurídico, não existirá mais.
Isso
será definido na forma de execução das leis aprovadas no Congresso
Nacional por um conselho em que cada estado vai ter um delegado, que não
se sabe qual será, e 5.569 municípios terão 27 delegados. Vale dizer,
perderão a possibilidade de decidir em casa e serão subordinados a um
conselho.
Num
regime que vai devolver tributos e num regime que vai compensar,
inclusive, estados e municípios que perdem, mas de acordo com critérios
que vão ser estabelecidos e que, evidentemente, levarão os estados e
municípios que vão perder receita a estarem com um pires na mão durante o
governo. É um projeto de poder.
A
própria competência das entidades federativas de definirem as alíquotas
no regime jurídico imposto pela União é relativa, pela impossibilidade
de se alterar o regime. Em outras palavras, dificilmente o farão.
Com
a concentração da autonomia financeira das diversas entidades
federativas na União, Brasília passa a ser não só a capital do país,
mas, de rigor, o lugar onde se definirá toda a história de todas as
entidades federativas.
Portanto,
um projeto de poder na definição da democracia, um Poder Judiciário
vinculado ao poder executivo nas decisões, nas suas declarações dos
ministros e um Congresso Nacional que, em última análise, o governo, por
enquanto, está sendo obrigado a conceder emendas para a destinação de
verbas para determinados locais, para determinadas áreas de influência
de alguns políticos, a fim de, com isso, ir também aprovando seus
projetos no Congresso.
Há,
portanto, um projeto de poder, de considerar que todos os pensam de
forma diferente, para, enfim, desvirtuar o pensamento conservador, pois
quem pensa diferente passa a ser bolsonarista. Sem se perceber, e tem
consciência que se percebe, que uma parte daqueles que votaram em
Bolsonaro não eram bolsonaristas. Votaram em Bolsonaro porque não
queriam Lula. De rigor, dos 150 milhões de eleitores, Lula só teve 60
milhões de votos. Vale dizer, 90 milhões de brasileiros não queriam o presidente Lula no poder.
Então,
dentro dessa linha, evidentemente, há um projeto de poder. Um projeto
de concentração de poder. Um projeto de tentar desfigurar a oposição, os
conservadores, fazendo com que esses pensadores recebam sempre o cunho
de bolsonaristas, sabendo que, assim fazendo, a imprensa se coloca
contra, porque no período do ex-presidente Bolsonaro, ele foi inábil no
contato com a imprensa, além de reduzir os anúncios oficiais.
A
maior parte da imprensa se colocou, durante os quatro anos, contra
Bolsonaro e continua criticando pela forma como foi tratada pelo
governo, principalmente em nível de receitas, que é o que não
acontece no governo atual: que voltou a colocar os anúncios que a
imprensa precisa, o que se compreende perfeitamente, porque, realmente, a
imprensa tradicional depende dos anúncios para manter as equipes, que
não são baratas.
E
a grande parte de conservadores, que não querem o marxismo, já que o
presidente Lula se disse comunista e colocou um ministro, que se declara
comunista, no Supremo.
Mas,
a essa altura, como todos os conservadores para a esquerda são
considerados bolsonaristas, cria-se a ideia que quem é bolsonarista não
pode pensar em democracia e os da esquerda são os únicos que sabem bem o
que é a democracia, que é o caminho de pensamento único e socialista.
É dentro desse quadro parece-me que nós estamos, em um processo de tornar o Brasil de rigor, como dizia Gramsci “uma das formas da esquerda de conquistar o poder é utilizar todos os caminhos da democracia”
e implantar a ditadura. Nós estamos a caminho, no Brasil, das trilhas
gramscianas, daquele filósofo e cientista político que percebeu que, em
muitos países, a ditadura de esquerda era conseguida por meio de processos ditos democráticos.
Creio
que a única forma que os conservadores têm de combater, numa
democracia, esse quadro é utilizar o que eu mesmo, como conselheiro da
OAB, de 1979 a 1984, usei, ou seja, a palavra. Se mais pessoas tiverem a
coragem de dizer o que está acontecendo e não tiverem receio de ser
perseguidas por pensarem de forma diferente do governo e continuarmos a
defender o que a democracia se faz com o diálogo amplo, respeitoso, mas
permanente entre as teses de situação e oposição, se nós não fizermos
isso, nós correremos a passos largos para uma ditadura.
Como
um velho professor de direito, acostumado a escrever sobre direito,
economia, ciência política, filosofia, história e literatura, que
completará 89 anos em 12 de fevereiro, venho aos brasileiros e,
especificamente, aos meus leitores fazer esse apelo: que tenhamos
coragem de utilizar a grande arma da democracia, que é a palavra, a fim
de mostrar quais são os fatos e não as narrativas que hoje estão
dominando o país.
Ives Gandra da Silva Martins é
professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo, UniFMU,
do Ciee/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do
Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal
Regional Federal – 1ª Região, professor honorário das Universidades
Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis
(Romênia), doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e
das PUCs PR e RS, catedrático da Universidade do Minho (Portugal),
presidente do Conselho Superior de Dire ito da Fecomercio-SP, ex-p
residente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos
Advogados de São Paulo (Iasp).