O fármaco teria ação antidepressiva potente até em casos que não respondem
ao tratamento normal. E seria o primeiro psicodélico contra doenças
psiquiátricas
Um possível novo tratamento para
a depressão que resiste a remédio pode ser aprovado em breve (Ilustração:
Pedro Hamdan/SAÚDE é Vital)
Em
setembro de 2018, a farmacêutica Janssen apresentou à agência reguladora de
alimentos e medicamentos dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês) um pedido
de registro de uso novo para uma medicação antiga. O laboratório solicitou que o
anestésico cetamina, sintetizado nos anos 1960, possa ser
empregado contra a depressão que não cede
aos antidepressivos, chamada de refratária ao tratamento (ou depressão
resistente).
Nos
últimos 20 anos, um número crescente de estudos sugere que, em doses baixas, a
cetamina tem ação antidepressiva potente e rápida. No entanto, de fato a maior
parte desses experimentos foi conduzida com poucas pessoas e por um período
curto.
De
qualquer jeito, uma única aplicação de cetaminada, injetada no músculo ou na
corrente sanguínea, seria capaz de reduzir de modo significativo e relativamente
duradouro (cerca de uma semana) a tristeza, a desesperança, a falta de
motivação, a baixa autoestima e até os pensamentos suicidas que às vezes
acompanham a depressão severa.
“Em
doses de dez a 20 vezes inferiores às usadas na anestesia, a cetamina é um
medicamento que ajuda a tirar a pessoa do fundo do poço”, afirma o psiquiatra
Acioly Lacerda, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), um dos
pioneiros no uso experimental da droga contra a depressão no Brasil.
Um dos problemas de saúde mental mais frequentes no mundo, a
depressão atinge 300 milhões de pessoas, segundo a Organização Mundial da Saúde.
Pior: até metade não melhora com os
antidepressivos disponíveis.
De
olho nesse mercado, a Janssen desenvolveu uma versão da cetamina de aplicação
mais simples para indivíduos com depressão. Trata-se de um
spray nasal que deverá ser administrado sob supervisão médica.
Caso
seja aprovada pela FDA, a cetamina inalável deve se tornar o primeiro composto
da classe dos psicodélicos, que alteram a percepção da realidade, a ser adotado
no tratamento de doenças psiquiátricas com respaldo de uma autoridade
sanitária. Recentemente, tem crescido o interesse de profissionais de saúde
mental no uso terapêutico de psicodélicos, muitos em estágio inicial
de testes.
O
produto da Janssen está em avaliações avançadas em seres humanos: os ensaios
clínicos de fase 3, que medem a eficácia do produto, última etapa antes da
liberação para comercialização.
Em
maio, o grupo coordenado pela psiquiatra Carla Canuso, diretora de
desenvolvimento clínico da Johnson & Johnson – empresa que comanda a
Janssen –, publicou um artigo online no American Journal of Psychiatry em que mostra os
resultados de uma etapa anterior, os ensaios de fase 2.
Realizado
com pesquisadores da Universidade
Yale, nos Estados Unidos, o estudo avaliou a segurança e deu
indícios da possível eficácia do spray. Nele, 68 voluntários com depressão
refratária e risco
iminente de suicídio foram aleatoriamente indicados para
receber duas doses semanais de cetamina intranasal por quatro semanas ou de um
composto inócuo (placebo). Os dois grupos também foram tratados com um
antidepressivo convencional. Segundo o trabalho, quem recebeu cetamina melhorou
mais rápido, até o 11º dia dos testes.
Resultados
preliminares de dois ensaios clínicos de fase 3, dos quais participam centenas
de pessoas em 60 clínicas e hospitais de diversos países, inclusive do Brasil,
foram apresentados em maio no encontro anual da Associação Americana de
Psiquiatria e reforçam os achados anteriores.
“Se
a resposta da cetamina intranasal continuar superior à do placebo nos estudos
que estão terminando, a aprovação da FDA pode vir em até um ano”, diz o
psiquiatra Lucas Quarantini, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que, como
Lacerda, participa dos testes do medicamento da Janssen.
A
cetamina já vem sendo usada contra a depressão
Mesmo
sem aprovação das autoridades de saúde, já ocorre nos Estados Unidos, e mais
recentemente no Reino Unido e no Brasil, a prescrição de cetamina injetável
contra a depressão refratária. Nesses países, o composto está registrado apenas
como anestésico.
Seu
uso psiquiátrico não consta da bula e é considerado excepcional (ou off-label).
Por essa razão, a indicação da cetamina injetável contra a depressão ocorre por
conta e risco do médico, que só deve recomendá-la se os benefícios para o
paciente superarem os riscos.
Entre
possíveis reações adversas há o risco de dependência e
uma elevação temporária da pressão arterial. “O uso off-label é de
responsabilidade de cada profissional”, informou a assessoria de comunicação da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa), que regula a venda de medicações no Brasil.
No
país, a única empresa produtora de cetamina, o laboratório Cristália, entrou há
cerca de oito meses com um pedido na Anvisa para que o tratamento da depressão
passe a constar em bula. “Reunimos os estudos mostrando a segurança e eficácia
do produto contra a depressão e estamos aguardando”, conta o médico Ogari
Pacheco, cofundador do Cristália. Isso, claro, vale para a versão injetável – e
não a em spray, da Janssen.
A
aprovação pela autoridade sanitária daria respaldo aos médicos, que correm o
risco de sofrer ações judiciais. Também representaria um passo inicial para que
se torne possível pedir ao Ministério da Saúde a inclusão da cetamina, um
remédio barato (a dose custa entre R$ 5 e R$ 10), na lista de medicamentos e
procedimentos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pelos planos de
saúde.
Hoje, clínicas e hospitais públicos que tratam depressão com
cetamina dependem do setor de anestesiologia para fazer a compra. Na iniciativa
privada, é preciso ter alvará para a aplicação de fármacos injetáveis, além de
equipamentos para monitoração cardiorrespiratória e ressuscitação.
Nesses
locais, cada aplicação sai por R$ 600 a R$ 1 200 por causa da infraestrutura
exigida e do custo da hora das equipes médica e de enfermagem.
Lacerda calcula que cerca de 20 clínicas e hospitais brasileiros (ao menos seis ligados a universidades públicas) já ofereçam o tratamento com cetamina para a depressão. Na Unifesp, ele coordena uma equipe que atua em dois ambulatórios que funcionam todas as manhãs de segunda a sexta-feira e atendem apenas pacientes do SUS.
Lacerda calcula que cerca de 20 clínicas e hospitais brasileiros (ao menos seis ligados a universidades públicas) já ofereçam o tratamento com cetamina para a depressão. Na Unifesp, ele coordena uma equipe que atua em dois ambulatórios que funcionam todas as manhãs de segunda a sexta-feira e atendem apenas pacientes do SUS.
Nas
duas unidades, dez pessoas são tratadas com cetamina por dia. “Em quatro anos,
esse consórcio já realizou cerca de 6 mil aplicações de cetamina em
aproximadamente 1 200 indivíduos”, conta. “Entre 60% e 65% deles apresentaram
melhora considerável”, afirma o pesquisador.
“Há
razão para ser otimista com o impacto da cetamina na sobrecarga que a depressão
gera na saúde pública”, afirmou o psiquiatra americano John Krystal, professor
da Universidade Yale, em entrevista a Revista Pesquisa Fapesp.
“Nunca houve um medicamento que agisse de maneira tão rápida, eficiente e
persistente.”
Krystal
foi um dos pioneiros no uso da cetamina para tratar problemas psiquiátricos e
hoje detém uma parte das patentes licenciadas pela Janssen para administração
intranasal e seu uso para impulsos suicidas. Em meados dos anos 1990, ele
começou a investigar o efeito de doses baixas do anestésico sobre o humor e, em
2000, publicou a primeira evidência de que ele produzia um efeito
antidepressivo rápido em humanos.